terça-feira, 4 de novembro de 2014

O Estereótipo africano

Chimamanda Ngozi Adichie: “A África não é só miséria”
A escritora nigeriana ironiza o estereótipo africano e diz que ele é fruto da ignorância sobre o continente
JOSÉ FUCS
Nos círculos literários internacionais, a jovem escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, de 32 anos, ganhou status de celebridade. No mês passado, ela foi incluída numa disputadíssima lista dos 20 melhores escritores com menos de 40 anos elaborada pela revista The New Yorker. Seu segundo romance – Meio sol amarelo, de 2006, o único lançado no Brasil – já foi traduzido para 27 línguas e vendeu mais de 500 mil exemplares. Foi graças a uma palestra que deu em 2009, na conferência anual da TED, uma ONG americana dedicada a difundir as ideias de pensadores e realizadores de todo o mundo, que Chimamanda virou hit do YouTube, o site de compartilhamento de vídeos da internet. O vídeo da palestra “O perigo de uma história de um lado só”, em que ela ironiza o estereótipo miserável da Áfricanos países desenvolvidos, já foi visto por mais de 300 mil pessoas. Nesta entrevista concedida a ÉPOCA por e-mail, Chimamanda diz que a África não é só pobreza e que a adoção de crianças pobres africanas por artistas como Madonna e Angelina Jolie não ajuda a salvar o continente.
ENTREVISTA - CHIMAMANDA NGOZI ADICHIE

QUEM É
Escritora nigeriana de 32 anos, mora nos EUA e na Nigéria. Esteve na Feira Literária Internacional de Paraty (Flip), em 2008
ONDE ESTUDOU
Formou-se em comunicações e ciência política na Universidade Eastern Connecticut, em 2001. Fez pós-gradução em literatura criativa na Universidade Johns Hopkins e em estudos africanos em Yale 
O QUE PUBLICOU
Meio sol amarelo (Cia. das Letras, 504 páginas, R$ 59), lançado no Brasil em 2008. Escreveu também Purple hibiscus e The thing around your neck, ainda não lançados aqui


ÉPOCA – Em suas palestras, a senhora ironiza o estereótipo da África nos países desenvolvidos. Por quê? 
Chimamanda Ngozi Adichie – É uma visão baseada na catástrofe. A África é vista como um lugar cheio de coisas negativas. Exceto no caso das biografias de Mandela, que realmente não contam, porque são menos sobre a África e mais sobre o perdão mágico que ele concedeu às atrocidades dos brancos, não me lembro de ter visto uma única vez na mídia uma história sobre a África que não era sobre pobreza, aids, morte ou guerra. Há pobreza na África, mas existem pessoas que pensam que a pobreza é tudo o que a África tem.


ÉPOCA – Uma de suas maiores críticas é contra a expectativa de muitos leitores de encontrar histórias “autenticamente africanas” em seus romances. O que há de errado nisso? 
Chimamanda – Quando falamos de autenticidade, estamos em geral levando em conta uma pureza que não existe. A história de uma criança pobre que está pegando em armas ou de um ditador corrupto é tão válida quanto a história de um camponês de uma pequena vila rural ou de uma família da classe média que trabalha duro para mandar suas crianças para uma boa escola ou de uma trabalhadora urbana que compra um carro ou a de um casal que está discutindo uma relação afetiva complicada. Quem pode dizer que uma dessas histórias é mais “autenticamente africana” que a outra? Com base em que podemos julgar a autenticidade dessas histórias? Quem fará o julgamento? E, mais que tudo, por quê?

"As pessoas devem ter permissão para adotar crianças de qualquer
lugar. Mas é ridículo pensar que vão salvar a África assim"

ÉPOCA – Em sua visão, não existe, então, falar de uma cultura tipicamente africana? 
Chimamanda – A cultura humana é resultado de uma longa história de trocas. O café surgiu na Etiópia. Isso significa que uma história em que os americanos bebem café não é autêntica porque o café não é originalmente americano? As pessoas que falam em histórias “autenticamente africanas” – e acho estranho que eu nunca tenha escutado ninguém falar de histórias autenticamente americanas ou inglesas – parecem pensar que a África é um lugar que deveria permanecer como um museu para o entretenimento dos outros. Em geral, elas sabem muito pouco sobre a África e, por isso, insistem em fazer uma representação única de suas estreitas visões. É por isso que uma história sobre uma família de classe média ou de ricos africanos é vista como não autêntica. Não existe essa coisa de autenticidade. Isso sempre tem a ver com a mentalidade da pessoa que está dando o rótulo.

ÉPOCA – Em sua trajetória literária, a senhora sofreu algum tipo de discriminação por não falar do que se considera como a “África autêntica” ou de coisas que as pessoas costumam identificar como africanas? 
Chimamanda – Sempre haverá quem pense que a verdadeira África é uma coisa única e estreita. Quando eu estava na faculdade nos Estados Unidos, um professor uma vez me disse que meu romance não era autenticamente africano. Eu até poderia aceitar que o romance tinha vários problemas, mas não tinha imaginado que eu havia fracassado em expressar algo chamado “autenticidade africana”. Na verdade, eu nem sabia o que era “autenticidade africana”. O professor me disse que os personagens eram muito parecidos com ele, um homem bem-educado da classe média. Meus personagens dirigiam carros, não estavam morrendo de fome. Não eram, portanto, “autenticamente africanos”. Felizmente, tenho encontrado muita gente que não pensa assim.

ÉPOCA – Muitas celebridades, como Madonna e Angelina Jolie, adotaram crianças africanas, como se assim estivessem ajudando a reduzir a pobreza na África. O que a senhora pensa sobre isso? 
Chimamanda – As pessoas podem e devem ter permissão para adotar crianças de onde elas quiserem, desde que sejam bons pais. Mas é ridículo pensar que você está salvando um continente ao adotar uma criança. Para ajudar o continente africano, seria melhor, por exemplo, se engajar politicamente na batalha para que os países desenvolvidos acabem com os subsídios a seus fazendeiros e dar mais importância ao comércio com a África.

ÉPOCA – Em sua opinião, o que faz uma boa ficção? 
Chimamanda – Emoção. Atenção à linguagem. Complexidade. Paixão.

ÉPOCA – Quais são seus escritores favoritos? 
Chimamanda – Chinua Achebe (Nigéria), Jamaica Kincaid (EUA), Ian McEwan (Reino Unido), Phillip Roth (EUA), Ama Aita Aidoo (Gana), Toni Morrison (EUA) e Alejo Carpentier (Cuba).

ÉPOCA – Que livros está lendo agora? 
Chimamanda – Passing (Partida), de Nella Larsen (EUA), e The bottom billion (O bilhão da base), de Paul Collier (Inglaterra).

ÉPOCA – Que autores brasileiros a senhora conhece? Quais são seus preferidos? 
Chimamanda – Jorge Amado é meu favorito. Também gosto de Dom Casmurro, de Machado de Assis, um romance de um jovem que se apaixona por uma menina muito interessante da classe baixa.


ÉPOCA – Qual foi sua impressão do Brasil? A senhora tem planos para voltar ao país? 
Chimamanda – Tive uma ótima passagem pelo Brasil. A Feira Literária de Paraty é uma das melhores do mundo. Também estive no Rio de Janeiro. Meu editor brasileiro e sua família também foram ótimos. Gostaria de voltar e conhecer a Bahia e, talvez, escrever sobre como as contribuições que as culturas primitivas dos escravos africanos ao Brasil têm sido reinterpretadas pela atual geração.

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