terça-feira, 4 de novembro de 2014

celulares na África

A revolução do SMS
O mercado africano de celulares é o que cresce mais rápido no mundo. Com aparelhos simples e comunicação baseada em mensagens de texto, a mobilidade mudou a vida de milhões de pessoas. O que a experiência da África pode nos ensinar?
Amanda RossiInfo Exame - 05/
2011
Um dia na vida de um agricultor africano não é feito apenas de trabalhar a terra e fazer a colheita. Usando o serviço de SMS de seu celular simples, ele acompanha os preços oferecidos pelos mercados da região para os produtos que cultiva. É pago com dinheiro móvel, que trocará por moeda corrente ou usará para adquirir outras mercadorias. Ele recebe, também por SMS, o dinheiro enviado pelo filho que mora na Inglaterra. E se um elefante está seguindo em direção a seu povoado, um torpedo o alerta de que terá de proteger sua plantação do estômago voraz do animal. Nada disso é previsão para o futuro ou projeção de como as tecnologias móveis contribuirão para o desenvolvimento do continente mais pobre do mundo.

Na África, este é um retrato do que já acontece em diversas regiões, em função da rápida massificação dos celulares. Há oito anos, apenas 5% da população africana possuía um celular. Esse número subiu para 41,4% em 2010. Crescimento tão expressivo fez da África o mercado que cresce mais rápido no mundo, atingindo o dobro do aumento verificado no restante do globo. Hoje, mais pessoas têm acesso à telefonia móvel do que a energia elétrica em países como Moçambique e Quênia. Existem aparelhos que podem ser carregados pelo sol e lojas que vendem tempo na tomada para completar a bateria. Em 2014, estima-se que dois em cada três africanos terão um celular.

A maior inovação vinda da África está na utilização de aparelhos simples para resolver problemas do dia a dia, principalmente usando o popular SMS (short message system). "O celular está mudando a vida das pessoas na África de forma muito mais abrangente do que nos mercados maduros", diz a analista Stephanie Baghdassarian, da consultoria Gartner. Há uma revolução móvel acontecendo no continente africano que pode ser vista nas diferentes formas de transformar um simples torpedo em ferramenta para transferir dinheiro (inclusive entre países, como Inglaterra e Quênia), fazer pagamentos, promover campanhas de saúde pública e mapear conflitos, além de acompanhar o vai e vem dos mercados, tirar empréstimos bancários e até guardar dinheiro em uma poupança. Tudo por SMS.
 “A inovação surge da escassez. Esta é talvez a lição mais importante que aprendemos com a expansão dos serviços móveis na África", afirma Ken Banks, desenvolvedor da FrontlineSMS, plataforma de envio massivo de mensagens pelo sinal de celular, utilizada em diversos países do continente para programas de saúde e educação. "Eu não posso usar meu telefone para pagar um táxi em Londres porque tenho muitas outras opções para isso. Mas se estou no Quênia, não haverá um caixa eletrônico em cada esquina e a maioria das pessoas não tem conta bancária. Mas tem um celular", diz Banks.

USO DO CELULAR CRESCE RÁPIDO
: Acesso a telefone móvel, fixo e internet na África (por 100 habitantes).

DINHEIRO MÓVEL NO QUÊNIA

Os modelos simples e baratos, que fazem apenas ligações e enviam torpedos, representam a quase totalidade do mercado africano de celulares, devido ao baixo poder aquisitivo da população. Na África Subsaariana, 490 milhões de pessoas vivem em condição de pobreza, segundo a ONU. Incrementados por serviços inovadores, esses celulares baratos se transformam em poderosas ferramentas. "Para desenvolver um sistema massivo de informação na África é preciso que ele envolva SMS", afirma Banks. "Ao optar por uma plataforma online para celulares ou por aplicativos que precisam ser baixados, exclui-se de cara um enorme contingente de pessoas. No Zimbábue, por exemplo, a penetração da internet é de 5%."
O Quênia, país do leste africano, está no topo da inovação móvel no continente. Lá surgiu o programa de dinheiro móvel mais bem-sucedido do mundo, o M-Pesa. Em quatro anos de operação teve a adesão de 35% da população do país (ou 14 milhões de pessoas) e movimenta 17 milhões de dólares por dia. "O M-Pesa criou oportunidade de negócios", disse a INFO Michael Joseph, o criador do serviço. "No início, as pessoas recebiam o dinheiro pelo celular e trocavam por moeda. Depois, passaram a guardar no próprio aparelho e trocar por uma cerveja", diz Joseph.

Além do M-Pesa, há 52 projetos de dinheiro móvel na África, mais da metade do total dos 103 existentes no mundo, segundo a consultoria Amarante. Na América Latina, são apenas 13, e no Brasil ainda estão em teste. O mercado africano é promissor devido ao baixo nível de utilização bancária. "Menos de 5% da população da África Subsaariana tem acesso a bancos", afirma Aiaze Mitha, diretor da Amarante.
Programas que utilizam o celular em áreas como agricultura, saúde e educação se multiplicam, financiados por empresas privadas, doadores internacionais e governos. Em Uganda, o projeto Amigos dos Agricultores, feito em parceria com o Google, envia por SMS técnicas de cultivo agrícola, previsão do tempo e cotações. O Esoko, software de acompanhamento por SMS das cotações do mercado, foi lançado em Gana e se espalhou para oito países da região.

Antes da utilização dos celulares, agentes da área de saúde comunitária do Malavi, pequeno país do sudeste africano, anotavam o estado de saúde dos pacientes e se deslocavam até os hospitais mais próximos, muitas vezes a centenas de quilômetros, para registrar as informações. Hoje, usam o FrontlineSMS Medic, aplicativo que transmite os dados usando mensagens de texto. No Mali, ao norte, uma ferramenta semelhante registra excelentes resultados no combate à desnutrição infantil. Quênia e Uganda usam o Ushahidi, software de mapeamento por SMS, para monitorar casos de carência de medicamentos, no programa Stop Stocks-Out.

Os torpedos se transformaram também em um meio de organização política na África. O principal exemplo é a revolta popular que ocorreu em Moçambique, em setembro de 2010, contra a inflação. Convocado por mensagens SMS anônimas, o movimento chamou a atenção do mundo devido ao poder de mobilização. "Moçambicano, prepara-te para a greve geral contra a subida do pão, água, luz e diversos. Envie para outros moçambicanos. Despertar." A mensagem levou milhares às ruas e forçou o governo a reduzir o preço dos produtos básicos.

O Gartner estima que até 2014 o número de conexões de celular na África deverá crescer 60%, passando dos atuais 530 milhões (duas vezes e meia o total brasileiro) para 724 milhões. A receita das empresas de telecomunicações também deve continuar em alta. Hoje, o total movimentado representa boa parte do PIB dos países africanos. No Senegal é de 9%; na África do Sul, 7,5%; no Quênia, 6%. A média mundial gira em torno de 3%.

O crescimento vai se ancorar na expansão da cobertura da rede e da abertura de novos mercados. "Há muita competição", diz Stephanie Baghdassarian, do Gartner. Alguns países, como a Nigéria, têm até dez operadoras competindo. Ao contrário do Brasil e de outros mercados mais maduros, o setor não é tão regulamentado e só agora surgem as primeiras iniciativas de registro de aparelhos.

As tarifas são mais baratas do que as brasileiras. Enquanto o custo de um pacote básico de celular (25 ligações mais 30 SMS) saía por cerca de 34 dólares no Brasil, em 2009, no Quênia era de 7,50 e na Nigéria de 10 dólares, segundo a ITU (União Internacional de Telecomunicações). Mas o poder de compra é bem menor e o pacote básico corresponde a 23% da renda per capita média na África.

Para servir a um mercado de tão baixa renda, as operadoras precisam oferecer serviços flexíveis. As recargas mínimas de pré-pagos, por exemplo, que atendem a 95% dos usuários, têm valores de 20 meticais em Moçambique (cerca de 1 real) e de 50 nairas na Nigéria (0,50 real), por exemplo. Em muitos países também é possível enviar crédito para o celular de outras pessoas.

DINHEIRO E SAÚDE MÓVEIS 
Conheça alguns usos inovadores dos celulares na África

Transferência de dinheiro

O "m" vem de mobile e "pesa" significa dinheiro em suaíli, língua falada no Quênia. O M-Pesa é o primeiro sistema de transferência de dinheiro por celular do mundo a operar em larga escala. Conta com 14 milhões de usuários (35% da população) e transfere 17 milhões de dólares por dia. Funciona assim: após se registrar, o usuário troca dinheiro por e-money, que pode ser enviado para qualquer celular do país e trocado novamente por dinheiro. Lojas, escolas e serviços aceitam e-money. É possível receber dinheiro da Inglaterra, com limite de mil euros por mês.

O mercado no SMS

Criado por uma empresa de software de Gana, o Esoko oferece cadastro de cotações de produtos, como os agrícolas, em várias regiões. O meio é o SMS. Ofertas para compra ou venda são cadastradas e distribuídas para os usuários. Acessível mediante pagamento de uma taxa, o sistema Esoko está em oito países.

Mensagens em massa

Em 2003, Ken Banks estava na África do Sul para criar um método de conectar uma comunidade a um parque nacional e viu no SMS grande potencial para comunicação. Naquele ano, só 5% da população africana tinha celular. Banks criou o FrontlineSMS, plataforma que usa o sinal de celular para enviar torpedos em massa, além de receber e armazenar. Hoje, o sistema é usado para monitorar eleições no Quênia, para lembrar as pessoas de que devem tomar seus medicamentos, para armazenar dados de pacientes no Malavi e para reportar violência contra a mulher no Benin ou contra crianças no Egito.

Mapeamento de problemas

O Ushahidi é um software livre criado no Quênia para mapear casos de violência após as eleições de 2008. Agora é usado em várias partes do mundo. Na Europa, reporta vazamentos de petróleo. No Haiti, localizou vítimas do terremoto. Ushahidi significa testemunho em suaíli. O usuário envia SMS com a localização do incidente. Os dados são georreferenciados e exibidos em mapa.

Programas de saúde pública

A desnutrição infantil no Mali foi reduzida com o auxílio do Pésinet. Os médicos podem monitorar dados de saúde de crianças que vivem em áreas remotas, coletados semanalmente por agentes de saúde e enviados por celular. Quando o estado de saúde é grave, os médicos enviam SMS para os agentes com os nomes das crianças que precisam ser avaliadas pessoalmente.

EXPANDIR A INTERNET É O DESAFIO DE HOJENo Quênia, a Safaricom criou um novo jeito de fazer ligação a cobrar. O toque do aparelho demora mais que o normal, indicando que a pessoa deve ligar de volta. Muitas operadoras também oferecem um tipo de SMS chamado "please call me" (por favor, me ligue), gratuito e acompanhado de anúncio publicitário. Além disso, em muitos países não existe interurbano. As chamadas dentro de qualquer cidade de Moçambique, por exemplo, têm custo local. "Todos esses serviços poderiam ser interessantes em mercados maduros, mas são desenvolvidos em países onde o dinheiro é curto e onde as operadoras precisam tornar seus produtos flexíveis para atrair os consumidores", diz Stephanie, do Gartner.

A África deu um salto direto para os celulares, sem passar pela telefonia fixa. Hoje há apenas um telefone fixo para cada mil habitantes. "Com a falta crônica de infra-estrutura, o único equipamento de comunicação que é acessível e universal é o celular", diz Mitha, da Amarante. Em 2008, o sinal de celular cobria 60% da população.

Um grande problema na África é a expansão da internet, já que menos de 5% da população têm acesso à rede. Devido à falta de infraestrutura para telefonia fixa, necessária para dial-up e ADSL, o 3G e os smartphones podem se tornar o principal meio de acessar a rede. Especialistas em telefonia móvel estão animados e acreditam que a maioria da população africana terá nos celulares seu primeiro contato com a web. "Os smarphones podem ser a única maneira para o usuário africano navegar", diz Stephanie, do Gartner.

Na África do Sul, na Nigéria e no Quênia já começa a surgir mercado para smartphones e internet 3G, mas na maioria dos países do continente o preço dos aparelhos ainda é proibitivo. Para Ken Banks, da FrontlineSMS, a África dará um grande salto quando um smartphone baixar para 30 dólares. "Os modelos mais baratos que se conectam à internet custam 100 dólares. É muito para quem vive com 2 dólares por dia." Quando os preços baixarem, o agricultor que depende do SMS para se livrar do elefante terá à disposição um mundo muito mais rico e interativo.

• 41% é a penetração dos celulares para cada 100 habitantes na África
• 95% do mercado é de pré-pagos
• 3 países (Nigéria, África do Sul e Quênia) têm a maior concentração de celulares

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